Federação Nacional dos Trabalhadores em Tecnologia da Informação

Antonio Neto: O futuro do trabalho não pode ser sem direitos

Confira artigo de Antonio Neto após sua participação na 113ª Conferência Internacional do Trabalho da OIT, realizada em Genebra, na Suíça

O futuro do trabalho – A 113ª Conferência Internacional do Trabalho da OIT (Organização Internacional do Trabalho) encerrou-se em meados de junho com importantes avanços e reflexões sobre o futuro do trabalho. Tive a honra e a grande responsabilidade de participar ativamente desse evento histórico, representando os trabalhadores brasileiros como integrante da Comissão sobre Trabalho em Plataformas Digitais. Foram duas semanas intensas de debates – sessões que avançavam noite adentro, mas recompensadoras.

Um dos destaques da Conferência foi o embate em torno da criação de uma Convenção internacional (norma vinculante) complementada por uma recomendação sobre trabalho em plataformas digitais, em vez de apenas uma recomendação não-obrigatória. Aqui, o papel do Brasil foi essencial para vertebrar o debate político global e garantir um desfecho favorável aos trabalhadores. Representantes patronais apoiados por governos de diversos países – liderados pelos Estados Unidos e acompanhados por China, Índia e outros – pressionaram para aprovar somente uma recomendação, sob o argumento de que uma convenção comprometeria a inovação tecnológica e a sustentabilidade das plataformas.

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Não foi por acaso que logramos esse resultado inédito. A atuação do governo brasileiro, com posições firmes e coerentes, teve um papel histórico nesses debates, lembrando a todos o verdadeiro motivo de estarmos ali: garantir direitos e dignidade para os milhões de trabalhadores explorados na economia de plataforma.

Em Genebra, ficou claro que o Brasil voltou a assumir uma postura de protagonismo positivo na arena internacional do trabalho – baseada no respeito, na defesa dos direitos humanos e na articulação política em prol da justiça social. A postura firme do Governo Brasileiro na Comissão de Trabalho em Plataformas Digitais, liderada pelo secretário Gilberto Carvalho, pela secretária Maíra Lacerda e as equipes do Ministério do Trabalho e do Itamaraty, foi constantemente destacada e elogiada.

Essa defesa dos direitos dos trabalhadores de aplicativos não é nada mais que o cumprimento de uma bandeira histórica do movimento trabalhista, recolocando no centro do debate internacional o trabalho digno, a proteção social e o enfrentamento à precarização. Sinto orgulho de ver nosso país “vertebrar” a discussão global em favor de um futuro do trabalho mais justo.

Todo esse esforço apoia-se em um princípio basilar que a OIT reafirmou de forma veemente: trabalho não é mercadoria. Ou seja, não podemos aceitar que a força de trabalho seja tratada como um insumo descartável ou mero custo de produção. Esse princípio fundamental – consagrado há mais de 80 anos na Declaração de Filadélfia, documento fundador da OIT – reforça que o trabalho deve ser fonte de dignidade, e não objeto de exploração. Reafirmar essa ideia em plena era digital é crucial: por mais que a tecnologia mude as formas de trabalhar, os trabalhadores continuam sendo seres humanos com direitos, e não algoritmos ou peças intercambiáveis. Nosso compromisso na OIT foi, acima de tudo, reafirmar que a dignidade humana deve prevalecer sobre quaisquer interesses de mercado.

Houve quem alegasse que assegurar direitos mínimos aos trabalhadores de apps poderia “engessar” a inovação – visão que a bancada dos trabalhadores combateu vigorosamente. Não se trata de frear a inovação, e sim de orientar seu curso para que sirva às pessoas. Trabalho decente e inovação podem e devem caminhar juntos. A decisão da Conferência de avançar rumo a uma Convenção demonstra que a comunidade internacional, apesar da posição atrasada do setor patronal e de países como EUA, China e Índia, não aceitará que a modernidade seja construída às custas de retrocessos sociais. Trabalho não pode ser reduzido a commodity – exige, isso sim, direitos, proteção e respeito à dignidade em qualquer contexto ou país.

A 113ª CIT também foi espaço de troca de experiências entre países. Algumas nações já estão mostrando na prática que é possível conciliar tecnologia e direitos trabalhistas. Espanha, por exemplo, implementou a conhecida “Lei dos Entregadores” (Lei Rider), que reconheceu o vínculo de emprego de trabalhadores de plataformas e garantiu direitos básicos, como salário-mínimo e seguridade social. O México, por sua vez, deu um passo histórico ao aprovar, no final de 2024, uma ampla reforma para proteger motoristas e entregadores de aplicativos. A Câmara dos Deputados mexicana aprovou por unanimidade um projeto que garante previdência social, licença-maternidade, participação nos lucros e outros direitos trabalhistas aos trabalhadores de aplicativos como Uber, Rappi e DiDi. Essa reforma coloca o México lado a lado com países como Chile e a própria Espanha, que já regulamentam o trabalho em plataformas digitais assegurando direitos laborais básicos, como salário mínimo e proteção previdenciária. Não à toa esses três países foram protagonistas das discussões.

Essas experiências exitosas servem de inspiração e evidência de que regular não significa engessar, e proteger não significa inviabilizar. É possível combinar flexibilidade com direitos, dando segurança tanto aos trabalhadores quanto ao modelo de negócio das plataformas. Garantir um patamar mínimo de direitos não destrói a economia digital – ao contrário, traz previsibilidade e justiça, reduzindo a exploração desenfreada. No caso da Espanha, o reconhecimento jurídico de que as plataformas exercem controle sobre os entregadores (e, portanto, a relação é de emprego) foi confirmado pela mais alta corte do país, impulsionando a elaboração da legislação protetiva.

Vemos assim que há caminhos para incorporar os trabalhadores de apps ao Estado de Direito, assegurando-lhes proteção sem sufocar a inovação. Cabe ao Brasil aprender com essas lições e adaptar o que for necessário à nossa realidade.

Para mim, pessoalmente, a conclusão desta Conferência da OIT teve um sabor especial de dever cumprido e do que o poeta definia como o sonho sonhado junto. Isso porque vi virar realidade uma proposta que ajudamos a plantar três anos atrás. Em 2022, durante a 110ª Conferência da OIT, quando tive a honra de ser delegado dos trabalhadores, propus a criação de uma Convenção internacional específica para os trabalhadores em aplicativos. Naquele momento, já alertávamos: o trabalho via aplicativos é uma realidade crescente, mas não pode ser sinônimo de precarização. Defendíamos a necessidade de construir regras claras, que garantam direitos e proteção social para esses trabalhadores, e que essa luta era não apenas necessária, mas urgente.

Hoje, ao ver a OIT avançando exatamente nessa direção – com a aprovação da elaboração de uma Convenção sobre trabalho em plataformas – sinto orgulho do protagonismo brasileiro nessa agenda. Não se trata de mérito individual, e sim coletivo: fruto da atuação conjunta de nossas centrais sindicais e de todos que, lá atrás, ousaram levar o tema ao debate global mesmo quando muitos duvidavam.

Isso mostra que vale a pena perseverar nas pautas justas, ainda que pareçam difíceis. Seguiremos acompanhando de perto a continuidade dos trabalhos: a Comissão de Plataformas Digitais terá mais um ano de discussões até a 114ª CIT em 2026, quando esperamos concluir e aprovar definitivamente esse instrumento histórico de proteção global aos trabalhadores “plataformizados”.

As conquistas internacionais nos fazem olhar também para dentro do nosso país e refletir sobre os desafios domésticos. Nos últimos anos, os trabalhadores brasileiros enfrentaram graves retrocessos em seus direitos. A chamada Reforma Trabalhista de 2017 – ou melhor, a “deforma” – representou um verdadeiro desmonte de garantias históricas, enfraquecendo a posição do trabalhador sob o falso pretexto de modernização. Esse pacote de mudanças legais precarizou as relações de trabalho no Brasil, abrindo brechas para jornadas exaustivas, aumento da informalidade e fragilização de entidades sindicais. Os resultados estão à vista: proliferação de contratos precários, explosão da informalidade, queda na renda real de muitos trabalhadores e a intensificação do desequilíbrio nas relações entre capital e trabalho.

Sabemos bem quem patrocinou esse retrocesso – um projeto de cunho neoliberal levado adiante pelo governo Temer e aprofundado pelo governo Bolsonaro. Mas, mais importante do que apontar culpados, é enfatizar que não podemos aceitar o desmonte de décadas de lutas sociais em nome de uma pseudomodernidade.

Para reverter esse quadro, é fundamental reafirmarmos os pilares da proteção trabalhista no Brasil: a CLT, a Justiça do Trabalho e a negociação coletiva. A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), desde sua promulgação em 1943, permanece como a espinha dorsal dos direitos trabalhistas brasileiros. Foi sob seu manto que conquistas como férias remuneradas, 13º salário, jornada diária limitada, proteção previdenciária, FGTS, entre tantas outras, tornaram-se realidade para gerações de brasileiros. Debochar da CLT – ou tentar esvaziá-la – é desprezar este legado civilizatório que até hoje protege milhões de famílias trabalhadoras. É claro que o mundo mudou em quase 80 anos, mas a solução não está em jogar fora a CLT, e sim atualizá-la onde for preciso, mantendo seu espírito de proteção.

Da mesma forma, precisamos valorizar e fortalecer a Justiça do Trabalho, instituição fundamental para equilibrar as relações e garantir que direitos sejam efetivados. Como destacou recentemente o ministro Luiz Marinho, a Justiça do Trabalho exerce um papel insubstituível no equilíbrio das relações laborais e na mediação de conflitos. Tentar enfraquecê-la é um grave atentado contra os trabalhadores e contra a própria ideia de justiça social. Ao contrário, devemos garantir que a Justiça trabalhista tenha respaldo para continuar atuando de forma célere e independente, corrigindo abusos e assegurando o cumprimento das leis.

Igualmente essencial é revigorar a negociação coletiva e a organização sindical, que andaram fragilizadas após 2017. A negociação coletiva é o caminho natural e democrático para adequar as relações de trabalho às novas realidades sem rebaixar direitos. Para isso, é urgente reconstruir um ambiente de confiança entre empregados e empregadores, fortalecendo os instrumentos coletivos de negociação, assegurando segurança jurídica nas relações de trabalho e garantindo condições para o adequado financiamento do sistema sindical.

Em suma, precisamos resgatar o diálogo social, base do modelo tripartite da OIT, aqui dentro do Brasil. Somente com sindicatos fortes e representativos, capazes de dialogar e de pressionar quando necessário, conseguiremos atualizar nossa legislação trabalhista de forma equilibrada e eficaz. O sindicalismo – longe de ser um “atraso”, como pintam alguns detratores – é força motriz do progresso social e da distribuição de renda. Ao longo da história, foram as lutas coletivas que conquistaram cada direito que hoje temos. Não há futuro justo do trabalho sem respeito ao passado e ao presente da organização coletiva dos trabalhadores.

Um dos pontos nevrálgicos do debate atual – tanto na OIT quanto, especialmente, no Brasil – é a necessidade de desmascarar a narrativa enganosa do chamado “empreendedorismo” como solução mágica. Nos últimos anos, propagou-se com força a ideia de que o trabalhador deveria se ver não mais como empregado com direitos, mas como um empreendedor individual, um “parceiro” autônomo das empresas. Essa retórica sedutora, embalando relações precarizadas com linguagem de modernidade, vem servindo para justificar a supressão de proteções legais e o enfraquecimento de laços coletivos. É um projeto que visa formar, desde a infância, trabalhadores precarizados sob a embalagem de ‘empreendedores’, incentivando-os a se virar por conta própria, sem direitos e sem organização coletiva. Em outras palavras, tenta-se incutir nos futuros trabalhadores a ideia de que ter carteira assinada, ter sindicato, ter proteção social, é “antiquado” – quando, na verdade, é justamente o oposto: sem esses mecanismos, retrocedemos a formas de exploração que pensávamos superadas.

No Brasil, essa narrativa falaciosa está sendo enfrentada também no campo jurídico. No Supremo Tribunal Federal, atualmente, está em discussão uma tese que poderá acabar com as relações de trabalho vigentes. A prevalecer a tese de que praticamente qualquer um pode ser PJ em qualquer situação, teríamos a legitimação de uma pejotização irrestrita que rasga a CLT e as conquistas de décadas, deixando o trabalhador sozinho e vulnerável. E não nos iludamos: se um modelo com menos – ou nenhum – direitos trabalhistas se legitima em um setor, ele tende a se espalhar por todo o mercado de trabalho, afetando toda a sociedade. Foi assim no passado, quando a falta de proteção num segmento pressionava os demais para baixo, e será assim novamente agora, em escala potencialmente maior dada a rapidez das novas tecnologias.

Por isso, nossa posição é firme: é possível, sim, atualizar as relações de trabalho e incorporar novas formas de trabalho, mas jamais à custa de direitos básicos e da dignidade humana. Modernizar, sim; precarizar, não. Combater essa visão distorcida é crucial. Não se trata de “engessar” a economia, repetimos, e sim de coibir a fraude trabalhista travestida de modernidade.

A conferência de Genebra nos deixou lições valiosas e um norte claro: o futuro do trabalho pode e deve unir inovação com inclusão, eficiência com justiça, produtividade com dignidade. Para chegar lá, teremos de enfrentar muitos interesses contrários e narrativas enganosas, mas estamos no caminho certo. O sindicalismo terá papel central nesse processo, atuando tanto no plano internacional – como fizemos na OIT – quanto no nacional, nas mesas de negociação, no Parlamento e nas ruas. A organização coletiva dos trabalhadores continua sendo nossa melhor ferramenta para equilibrar o jogo contra o poder econômico desmedido. Não há aplicativo, algoritmo ou inteligência artificial que substitua a força da solidariedade e da união em prol de causas comuns.

Saio da 113ª Conferência Internacional do Trabalho renovado em minhas convicções. Vi a força, a cumplicidade e a solidariedade dos trabalhadores dos diferentes cantos do mundo. Vi um Brasil novamente protagonista pelo que tem de melhor: sua capacidade de construir consensos progressistas e liderar pelo exemplo na defesa dos mais vulneráveis. O espírito tripartite da OIT – de diálogo entre governo, trabalhadores e empregadores – mostrou-se vivo em Genebra e deve nos inspirar de volta ao Brasil.

Aqui, precisamos sentar-nos à mesa todos os atores sociais, reconstruir a confiança mútua e pactuar novos avanços sem revogar direitos históricos. Temos pela frente a urgente tarefa de incluir os milhões de trabalhadores de plataformas e outras formas precárias na rede de proteção trabalhista. Isso demandará inovações legais e institucionais, sem dúvida. Mas tenho plena convicção de que conseguiremos, com firmeza política, visão crítica e capacidade de articulação, encontrar soluções que atendam às legítimas expectativas dos trabalhadores sem que signifique qualquer impossibilidade de desenvolvimento econômico.

Não renunciaremos aos nossos princípios, pois eles são fruto de lutas passadas e farol para o futuro. Atualizar as relações de trabalho, sim, mas sem jamais abdicar da proteção ao trabalhador que caracteriza qualquer sociedade verdadeiramente desenvolvida.

Por Antonio Neto, presidente do Sindpd-SP e da Central dos Sindicatos Brasileiros (CSB)

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