Data centers – Ambientes com estrutura comparável à de cidades, aproveitamento de água subterrânea e gasto energético similar ao de milhões de residências compõem os planos para os primeiros centros de dados brasileiros voltados à inteligência artificial (IA).
Pelo menos quatro empreendimentos desse tipo já foram divulgados, com construção prevista em cidades como Rio de Janeiro (RJ), Eldorado do Sul (RS), Maringá (PR) e Uberlândia (MG). Embora não tenham revelado quais empresas irão utilizar os espaços, grandes corporações de tecnologia são vistas como possíveis clientes.
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Outro data center está previsto para ser erguido em Caucaia (CE) e, segundo fontes da Reuters, pode atender à ByteDance, dona do TikTok — ainda que não haja confirmação de que terá foco em IA. Os data centers funcionam como imóveis alugados: as empresas contratantes ocupam o espaço com seus próprios “móveis”, ou seja, servidores, chips e demais equipamentos.
O setor de IA impulsionou a demanda por essas instalações, pois elas abrigam os supercomputadores usados no treinamento de modelos de linguagem, como os que alimentam o ChatGPT. Atualmente, o Brasil conta com 188 data centers voltados à computação em nuvem, ocupando a 12ª colocação no ranking global do site Data Center Map. Os Estados Unidos lideram com 3.905 estruturas.
Para que funcionem de forma adequada, esses centros precisam de energia e sistemas de resfriamento — aspectos considerados sensíveis do ponto de vista ambiental, especialmente em instalações dedicadas à IA. Isso ocorre porque os servidores utilizados esquentam intensamente e requerem soluções térmicas que, muitas vezes, envolvem o uso de água.
Apesar do reconhecimento da alta demanda energética desses centros, especialistas alertam para a escassez de dados públicos sobre o real impacto ambiental desses empreendimentos.
Gasto de energia estratosférico
A Elea Data Centers planeja erguer quatro unidades voltadas à IA no Rio AI City, complexo localizado em Jacarepaguá, zona oeste da capital fluminense. Um deles já está operando, mas, por ora, atende exclusivamente à nuvem.
Segundo a empresa, outros nove centros de dados já estão em operação no país, e a expectativa é que o complexo carioca alcance uma capacidade de 1.500 megawatts — com possibilidade de expansão para 3.200 megawatts.
Já no Rio Grande do Sul, a Scala Data Centers lidera o projeto Scala AI City, com instalação prevista para Eldorado do Sul — município com cerca de 40 mil habitantes. A empresa, que já possui 13 data centers em operação no Brasil, estima que a potência instalada alcance 1.800 megawatts até 2033, podendo chegar a 5.000 megawatts futuramente.
A potência elétrica, medida em watts, representa a capacidade de fornecimento de energia. O consumo diário, por sua vez, é medido em watts-hora. Para estimar o uso em 24 horas, basta multiplicar a potência por esse número. Como parâmetro, um data center tradicional de 20 megawatts pode consumir, no limite, energia equivalente à usada por cerca de 80 mil residências brasileiras.
Esse número foi calculado com base no consumo médio residencial diário no país — 6 quilowatts-hora por domicílio em março de 2025, segundo a Empresa de Pesquisa Energética, vinculada ao Ministério de Minas e Energia.
Na prática, esse consumo costuma ser inferior e varia conforme o volume de equipamentos em operação, conforme explica Eduardo Fagundes, engenheiro e professor com especialização em IA.”Não se consome toda essa energia. Cada servidor consome um pouco menos do limite dependendo do que você colocar para rodar”, diz. Para otimizar gastos, as companhias costumam redirecionar tarefas entre servidores distribuídos globalmente.
“Imagine um data center que use energia solar. Se não tem sol, ele não opera. Então, tem que buscar energia em outro lugar. Se houver data centers em diferentes lugares, eles acompanham o sol. É por isso que empresas estão colocando seus servidores em diferentes lugares do mundo”, complementa Fagundes.
Incentivos fiscais
Os projetos nacionais contam com respaldo de autoridades locais. Em dezembro, a prefeitura de Eldorado do Sul e o governo estadual aprovaram uma lei que institui um polo tecnológico de data centers na cidade, com incentivos fiscais.
A RT-One, que ainda não possui centros em funcionamento, anunciou empreendimentos em Maringá e Uberlândia, cada um com potência projetada de 400 megawatts. As construções começarão após os estudos de impacto.
Em Maringá, a prefeitura iniciou em janeiro tratativas com o governo federal para transformar parte da cidade em uma zona de livre comércio, com o objetivo de atrair investimentos no setor — altamente dependente de equipamentos importados.
Em Uberlândia, o lançamento foi celebrado pelo prefeito da cidade, que classificou a chegada do projeto como “uma oportunidade ímpar” de fomentar inovação, capacitação e desenvolvimento econômico. Já no Rio de Janeiro, o prefeito Eduardo Paes assinou um memorando de intenções com entidades públicas e privadas para viabilizar o Rio AI City, com o objetivo de consolidar a cidade “como uma espécie de capital da inteligência artificial brasileira”.
O governo federal também vê potencial no uso de recursos hídricos para refrigeração desses centros. “O país tem o potencial de aproveitar seus recursos naturais de maneira inovadora. Um exemplo é a possibilidade de utilizar a abundância de água em reservatórios de hidrelétricas para o resfriamento eficiente de infraestruturas de IA”, afirma o Plano Brasileiro de Inteligência Artificial.
O documento também destaca a intenção de usar a matriz energética predominantemente limpa do país como diferencial competitivo para o desenvolvimento sustentável da infraestrutura de IA.
A disputa por água
Diferentemente dos servidores em nuvem, que podem ser resfriados apenas com ar, os centros de IA exigem técnicas de resfriamento líquido — que envolvem a circulação de água ou óleo para dissipar o calor.
“Os chips [para IA] ficam tão quentes que precisam ser refrigerados internamente. Eles têm um circuito fechado que não consome nada de água”, explica Alessandro Lombardi, presidente da Elea. “É como se houvesse um circuito fechado. O líquido esquenta à medida em que gera temperaturas mais baixas [nos servidores] e volta para os equipamentos que fazem seu resfriamento”, complementa Cleber Braz, diretor de operações da Scala.
Tanto Elea quanto Scala afirmam que seus centros usarão óleo em sistemas fechados, sem necessidade de reabastecimento frequente. Já a RT-One planeja empregar refrigeração à base de água, captada do Aquífero Guarani, uma vasta reserva subterrânea que se estende por boa parte da região Sul.
Segundo Fernando Palamone, presidente da empresa, o sistema prevê o uso de trocadores de calor isolados, o que evitaria qualquer tipo de contaminação. “Tudo o que é preciso é bombear aquela água, passá-la em um trocador de calor – sem contaminação nenhuma, porque o trocador de calor é isolado –, refrigerar os sistemas e descê-la de novo para o aquífero”.
Gigantes de tecnologia entram no radar
Fontes ouvidas pela Reuters afirmam que a ByteDance utilizará o data center em construção em Caucaia (CE), que está sendo erguido pela Casa dos Ventos. Segundo a empresa, a primeira fase terá potência de 300 megawatts, com possibilidade de alcançar 576 megawatts. Esse volume, no limite, poderia abastecer 2,3 milhões de residências.
O projeto, que deve iniciar operações em 2027, prevê um sistema fechado de refrigeração líquida, reduzindo o uso de água. A empresa estima investimentos superiores a R$ 50 bilhões. Procuradas, TikTok e Casa dos Ventos não confirmaram oficialmente o uso do espaço pela ByteDance.
A Meta, responsável por redes como WhatsApp, Instagram e Facebook, também anunciou planos para construir grandes centros de dados — entre eles, o Hyperion, nos EUA, com 5.000 megawatts, conforme afirmou Mark Zuckerberg em julho. Google e AWS possuem data centers de nuvem em São Paulo. Embora comportem algumas aplicações de IA, essas instalações não foram projetadas com esse foco.
A AWS afirma que suas unidades não são segregadas por função, mas reconhece o impacto da IA na busca por eficiência energética. Segundo Fernanda Spinardi, executiva da AWS no Brasil: “A gente também faz uso de sistemas de refrigeração a líquido, não necessariamente água. É uma refrigeração líquida em circuitos fechados para evitar o consumo excessivo desse recurso”.
“Existem regiões onde a gente aproveita a própria questão climática local para diminuir bastante a necessidade da refrigeração. Cada data center vai ter a sua particularidade simulada antes de ser construído”.
A Microsoft, que mantém centros de nuvem no Rio e em São Paulo, afirma que eles já oferecem suporte à infraestrutura de IA. A empresa anunciou, em 2024, um aporte de R$ 14,7 bilhões para o setor ao longo de três anos.
Impacto ambiental ainda é incerto
O consumo hídrico desses centros depende do tipo de circuito adotado no resfriamento: fechado, com menor gasto de água e maior demanda energética; ou aberto, com uso contínuo de água, mas menor exigência elétrica. “A parte do treinamento definitivamente consome mais água, porque modelos mais novos consomem mais recursos, mais energia para treinar”, explica Shaolei Ren, professor de Engenharia na Universidade da Califórnia.
Ele é coautor de um estudo que estimou que o treinamento do GPT-3, da Microsoft, pode evaporar até 700 mil litros de água — e que 50 interações com o ChatGPT consomem, em média, meio litro. “O treinamento usa muita água, mas é apenas uma vez. Cada inferência [ou pergunta para o ChatGPT] consome uma pequena quantidade de água, mas, se somar todas as inferências, o número é enorme”, diz Ren.
“Precisamos entender o impacto e avaliar: estamos obtendo benefícios suficientes para compensar os impactos negativos do ponto de vista da sociedade? Queremos garantir que o benefício que isso traz supere o lado negativo”.
Segundo Elaine Santos, pesquisadora do Laboratório Nacional de Energia e Geologia (LNEG), em Portugal, ainda há muita opacidade sobre o tema. “Não há dados públicos. Para sabermos, de fato, quanto gasta e que impacto isso vai ter, temos que ler todos os relatórios, cruzar informações, fazer cálculos. É uma pesquisa muito aprofundada para cada data center”, afirma.
Ela ressalta a importância de analisar o contexto de cada região — incluindo escassez hídrica, perfil socioeconômico e uso energético. “Tem que analisar a região onde o data center está, se há uma escassez hídrica, que tipo de região é, como a energia é usada, se existe pobreza energética. Basicamente, fica impossível para qualquer pesquisador ou interessado no tema”.
Para Santos, a ausência de políticas públicas consistentes impede uma regulação adequada: “Outros países estão tentando controlar, restringir. E o Brasil não tem uma estratégia, está pensando agora em uma política”. O governo federal promete lançar em breve a Nova Política de Data Centers, com foco na atração de investimentos e desenvolvimento da cadeia produtiva.
O Ministério do Meio Ambiente afirma que, como qualquer empreendimento de grande porte, os data centers precisam de licenciamento ambiental, com avaliação de impacto e exigência de medidas mitigadoras. Além disso, para usar água, os projetos precisam de autorização específica. O processo inclui cálculos de disponibilidade hídrica, garantindo que o volume não ultrapasse a capacidade dos mananciais.
O Ministério de Minas e Energia informou que, entre 2020 e julho de 2025, aprovou 21 dos 57 pedidos de conexão de data centers à rede nacional de energia. Os projetos de Eldorado do Sul e Caucaia estão entre os que já receberam aval.
(Com informações de G1)
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